Suspeitas

É engraçado como ela acredita não acreditar em toda crença que ela mesma canta.
Suas conversas com Deus são hilárias. Sempre, do tipo, um happy hour para contar as novidades, agradecer ajudas, falar amenidades e piadas toscas entre alguns conselhos. No final, simplesmente diz: “OK! Hora de ir embora. Você não existe. Mas poderia, por favor, pagar a conta?”.
Corre pra casa, se afunda no confortável sofá com uma xícara de chá quente na mão e pensa sobre o diálogo que acabou de ter. Ou talvez tenha alucinado?
Ela tem um rosto engraçado. Bonito, mas engraçado. Adora conversar sentada ao piano. Está sempre em reflexão. E sempre as coloca em notas maiores em tons sarcásticos, daquelas ironias que só o amor é capaz de causar.
Encarna a aposta de Pascal mesmo sem saber. E, apesar de ter migrado pro outro lado do mundo por acreditar, ainda acredita não acreditar.
É um relacionamento confuso. Mas o tipo de ‘boa confusão’. A melhor definição de Deus é aquela que não O define.
No fim das contas, os grandes questionamentos surgem logo de manhã. Nunca sabe se oferece uma xícara de café, uma conversa sobre o que sonhou na madrugada, os planos do dia, da semana, do mês e do ano ou simplesmente exorciza a sua presença. Essa cumplicidade ofende sua estabilidade.
Sai de casa com uma canção que ela própria compôs.
“Você vai voltar quando acabar. Não há necessidade de dizer adeus”.
Ah, Deus!

Saudade

Saudade de fazer poesia
Daquele tipo: vazia
De raiva e beleza
Como vinho derramado à revelia

Saudade de jogar palavras na mesa
Sem dispor a tesa
Feito baralho velho
Rei, Rainha, Valete e destreza

Saudade da nudez
Pele branca: Palidez
De amor e medo
Compromisso feito a três

As vezes tenho saudade de mim
Daquele esquecido na esquina dos anos
Sem muito talento e nenhuma rima
Construção rota da vida.

Tendo Sido

Tenho andado pequeno feito gigante sofrendo de amor.
Tenho estado em silêncio feito psicopata em ardor.
Tenho me sido todo meu, feito Narciso no vidro.
Tenho, em estado vazio, respirado o bom veneno de mim.
Tendo estado. Entrementes, me nego a toda promessa do espelho.
Sendo orgulho descabido, me deito no chão feito as marcas do chinelo no pó.
Me volto a(o) ser quem foi.

Passageiros

O velho seguiu apressado tentando acompanhar os passos da esposa. Uma constante procissão de pessoas subindo e descendo as escadas do Metrô. Uns voltando pra casa, outros indo para o trabalho, escola, faculdade ou qualquer outro compromisso. A não ser por alguns retardatários, principalmente os perdidos no seu sério relacionamento com o celular, todos parecem estar extremamente atrasados. Alguns ao telefone contam suas histórias “o trem quebrou”. “estou parado no trânsito”, “teve manifestação perto de casa hoje cedo”, “perdi a hora”. Inclusive, lembro de um dia que liguei avisando que tinha “perdido a hora”. Um antigo chefe respondeu que das grandes responsabilidades da vida, a maior delas era, na verdade, achar essas horas. “Eu sei que você vai dar conta do serviço mesmo chegando atrasado. Mas talvez tenha perdido a oportunidade de ler algum grande livro nessas horas que perdeu. E eu sei o que isso significa pra você”. Desde então aprendi que não é o dia que deve ter 48 horas. Isso, automaticamente, deixaria os dias da minha vida pela metade, ao contrário do que imaginava. Era eu quem deveria ter disposição de organizar e aproveitar muito bem as 24 horas que me são dadas. Mas hoje, desacelerei. Acompanhei o casal de velhos. A senhora na frente e o senhor atrás tentando alcança-la. Ao que ela olha para os lados e percebe a ausência do marido. Olha pra trás e o percebe ofegante. Sem cerimônia retruca “Ande velho. Segure minha mão e não enfarte. Senão, não te beijo”.

O Espelho

As moedas tintilavam no bolso como que cantando uma velha canção. Um hino de vagabundos, um amor perdido, cerveja barata e a companhia nos balcões. Andava cambaleante pelo centro, antes pelo frio e as rajadas de vento do que pelo álcool que já não mais aquecia seu corpo. Ainda sim gostava da passagem do Outono para o Inverno. Aprendera a lidar com a friaca. Tornaram-se amigos. Ajudava-o a clarear as muitas idéias que tinha. Passava dias conversando consigo mesmo num diálogo frenético, ignorado pelas tantas pessoas que circulavam por ali todos os dias. Era só mais um pobre coitado precisando de um cobertor e um prato de sopa. Mas logo a noite chegaria, uma Kombi estacionaria rente a praça e as suas necessidades estariam saciadas. Pelo menos era esse o senso comum. Muito diferente do que realmente sentia ou precisava. Estava em êxtase. Outro mundo. Estava em si. Plenamente consciente. Aprendera que os desertos são os mais perfeitos espelhos.

Pequenos Cotidianos

Me disseram uma vez que solidão é doença de quem está sempre caminhando, ao contrário do que dizem por ai. Os que se cansaram e desistiram tem muito tempo e muita companhia. A falta de interação se dá pela falta de histórias a serem contadas, suponho eu.

Cheguei a conclusão, e não estou pedindo para concordar comigo, que quem não cria expectativa é porque também já desistiu. Ou o desejado não é tão importante assim. Mas há de se pensar em conceitos. Segundo um dos dicionários que consultei, expectativa significa “Ato ou efeito de expectar = ESPERA”. Logo, pra mim, o significado mais palpável é ter fé. Ai penso na mediocridade de tantos relacionamentos a minha volta e concluo que realmente se colhe o que se planta. Me parece que o lema hoje para relacionamentos é “crie gatos mas não crie expectativas”. Ou seja, não tenha fé na pessoa com quem você quer passar o resto da vida, no fim das contas o mundo está cheio de gatinhos e gatinhas.

Me disseram que eu preciso “ser alguém na vida”. Tendo em vista o significado usual dessa frase, ganhar dinheiro, pobre perde sua humanidade desde que se conhece por gente.

Falando em pobre, ai vai uma dica de saúde e economia; se você vende o almoço pra pagar a janta, tente inverter os coeficientes. Jantar e dormir engorda. Já o sono espanta a fome.

Sobre Casas, Jazigos, Vida e Morte

Não nego que penso constantemente na morte. Não de forma mórbida. Mas me pego pensando que, se eu morresse hoje, há quantos passos estaria do local do meu nascimento. Porque é inevitável pensar que, se a vida é movimento, o quanto caminhei? Se a vida é um sopro, ela é impulso. Onde exatamente estou hoje? A curitibana Zigurate já cantava “Como será, nascer viver e morrer no mesmo lugar? Sob sol escaldante à noite ao luar. Sobreviver à tempestades e o frio suportar…”

Sinceramente não gostaria eu de ser o dono da resposta dessa pergunta. Mas todas as vezes que penso sobre onde estou na minha caminhada que, hoje, posso afirmar, tem alvo claro, me pego pensando que não é falta de coragem dar passos maiores. As vezes é falta de vontade… é sentar no sofá do comodismo que é macio e embala os sonhos num sono profundo. E, paradoxalmente, não há perigo maior para os sonhos que o sono profundo, embalado pela chuva que cai sobre o telhado. Enquanto simplesmente ficamos encharcados nos nossos pensamentos adormecidos (Uns sentem a chuva, outros apenas se molham.” – Bob Dylan) brincamos de responder perguntas “E na primavera com suas cores e formas tão belas, o mundo salvar, como será?”.

E toda vez que penso que não levar a vida tão a sério não significa transforma-la num eterno playground, penso que minha idade está em descompasso com a maturidade. E é preciso correr. “Porque as coisas de menino ficaram para trás”. E passado, ou é propulsão ou pedra no pé no meio do oceano. Mas é preciso navegar. E se o barco afundar, aprenda a nadar até os braços doerem mortalmente. “Como será que deve ser pra eu me fazer entender, que sofrer é aprender”.

Mas “como será se continuarmos a lhe sangrar? Interrompendo o ciclo da vida até não poder mais?”. Porque é impossível desvincular do outro, mesmo que não tão próximo. Já dizia Donne “Nenhum homem é uma ilha”. E pensar que estagnar a vida é ser responsável não só por si. Porque tudo é referencia e todos são, de algum jeito, referenciais. Por isso as vezes sou rude. Falo coisas nonsenses, não necessáriamente insensatas, para que a vida seja desperta em alguns. Normalmente, depois de tomar uma porrada ou dar com a cara do muro. E as vezes, confesso, penso em desistir do(s) próximo(s) e me refugiar na minha ilha conscientemente, num surto misantrópico utópico. Mas envolve guardar a minha vontade de arte, de beleza, de vislumbre, de histórias, conversas, palavras, livros ou simplesmente de um café. Penso que privar as pessoas disso, não do meu pseudo talento, mas de um dom doado seria quase um assassinato. “Então você não mais vai suportar, e vai me odiar por não te amar”. Lembro-me de um amigo quando foi quase agredido por outra pessoa por compartilhar sua fé. Na hora da agressão ele abraçou forte seu agressor e disse “você não precisa fazer isso, eu não estou lutando contra você. Eu te amo. Preste atenção as minhas palavras, eu te amo”. E no fim, a agressão vazou pelos olhos, em lágrimas quentes.

Chego a conclusão que, estou cada dia mais longe da onde nasci, sem nega-lo, me aproximando das pessoas, principalmente dos menos próximos, já que nos tornamos especialistas e fortalezas digitais, sentimentais ou de bloco e concreto mesmo. E é impressionante o número de seres que pensam estar criando suas casas, castelos, raizes, legados, enquanto, na verdade, estão ornamentando seus jazigos.

A quem tem em quem confiar “deixa ser como será…”.

“Esta é a minha oração: que o amor de vocês aumente cada vez mais em conhecimento e em toda a percepção,  para discernirem o que é melhor, a fim de serem puros e irrepreensíveis até o dia de Cristo” Filipenses 1:9-10

Arte no Farol

Mas é certo que a linha do improviso se intercala com a linha do juízo. Que deixa nós de sabedoria no meu traçado da loucura lírica. Que granjeia gracejos como mendigo, aproveitando ensejo do farol fechado. E não tem jeito. Não há quem se feche com o fogo dos malabares que sobem e descem. Que se perpetua nos olhos famintos de arte flamejante. Que faz a alma subir um degrau do cotidiano cortante. E tudo isso é constante até o semáforo esverdear a cobiça do ego, que não olha para o lado, e muitas vezes, nem para frente. E “palhaço“ se torna palavra grosseira, vagabundeando na boca daqueles que se acham motoristas da vida. E tudo vira lombada, parada, atraso do crescimento dos monstros que se alimentam do vazio. E todo acidente termina na frente de um tela que diz tudo, o passo a passo de como não ser para viver.

Histórias Reais, Seres Imaginários

1Mas tinha cuidado com o par de sapatos que não tinha. Seguia firme. Ao que o recado pegou-o de surpresa.
– Mas porque corre tanto moleque?
– Espera… eu… respirar… velho. Há… um… recado… a te dar.

– Pois abra boca ligeiro, porque estou curioso, não com o recado, mas quem há de me conhecer e se importar, a ponto de pagar um mensageiro como você, que mal consegue falar.
– O único culpado de eu estar cansado são as duras palavras que tenho que lhe entregar. “Volte pra casa ligeiro. De longe não aprendi a te amar. Volte pra casa de preto, pois creio que irás enlutar. Volte pra casa sem meios, seu cheiro pra eternidade eu quero levar”.
De espanto, o velho ficara mais branco. De sobressalto empurrou o menino pro lado e, levanto poeira na estrada, voltou o caminho percorrido sem se importar com o sol, a fome e a sede. Nunca mais a iria deixar. Saíra de casa sem eira e nem beira. Já não se sentia mais digno de si e de sua bela velha mulher. Acabara-se a farinha, a água e o pão. Pegou a força que pouco lhe restava à enfrentar o sol quente e as mazelas do grande sertão. Não sabia o que buscar e nem onde. Não haveria de importar. Ninguém se importava, mas acharia. No fim, retornou de mãos abanando com desespero nos olhos fundos. Era preciso chegar de qualquer jeito, achar o corpo ainda quente da mulher e se aconchegar. Ela sabia o que aconteceria e a certeza na alma começou a pesar. Receberiam visita ilustre. “Ela tem que esperar”, pensou consigo mesmo. Acelerou o passo. O corpo ganhava vigor ao perceber as últimas curvas da estrada. Chegou.
– Mor, me espere por favor.
– Venha cá querido. A hora chegou.
Seco e sem lágrimas ao seu lado deitou. Na hora todas as forças das pernas e respiração do peito latente, cessaram. Simplesmente olhavam-se, sem força para qualquer carinho. Só o abraço cumprido dos braços que mais descansavam do que qualquer outra coisa. Não sentiam medo. Aprenderam a enfretar a vida de peito aberto, sem blindar o coração. Só queriam estar juntos. Ficarem juntos. Irem juntos. E se foram.
Ninguém registrou a entrada da visita. A não ser as poucas aves do sertão. Ninguém reparou na saída dos matutos famintos. Não só de fome. Mas, por agora, eternamente saciados.

Não Estamos

Não há paz melhor que aquela da guerra, do desespero, da desesperança. Mesmo que elas permaneçam firmes e a paz oscilando. Porque não andar ansioso só significa uma coisa. Não andar ansioso. Os problemas virão, as vezes te pegarão de calças curtas. Outras vezes, estarás nú. Mas pensa bem, que vida acéfala é a vida que não tem surpresas. Aprendi com a morte, que mesmo a caminho, definhando, ela chega como intrusa. E que temos sérias dificuldades para nos expressarmos. É clara a percepção de que, quem já não tem mais lágrimas para chorar é abençoado com oásis na alegria. Enquanto quem acumula rios para si, morre seco. Então vem cá. Chora comigo o caminho da felicidade. A felicidade do contentamento. Aquela vontade de um bom churrasco saciado no feijão com farinha ao lado do amigo, consigo, convosco, conosco. A felicidade da inquietação. Da certeza da dúvida, mas do não anulamento. Que caminha junto á Salvação, na certeza que ela sabe pra vai, mesmo que desconfie. A felicidade que não tem compromisso consigo. Que rejeita as fábulas mas se perde no absurdo. Vem. Chora comigo. Vibra o instante de pausa do chacoalhar do ônibus. A sabedoria que brota do corpo, sem tirar nem por. Da mente. Do anus. Porque não há alimento no mundo que não produza merda. E não há merda que não produza adubo. Que não produza. E se descobre interligado. Não terminado. Intermitente. Insano. E a dor é claridade. Satisfação. E nos lembra que dos maiores males, aquele que é mãe de todos, se defaz. Não estamos sós. Queiramos ou não.

Epílogo
A paz invadiu meu coração, porque a guerra foi gentil e bateu a porta antes.

Caos & Loucura

Não gosto da loucura. Gosto do caos. Nos caos sentimos todos os estilhaços. A loucura maqueia e anestesia. Cria irrealidades. O caos pode não ser ordenado, mas sempre nos leva a reordenar e reavaliar. Nos leva a repensar os valores e nos ensina que alguns tesouros nunca devem deixar seu lugar de origem. Levá-los na bagagem só os transforma em peso. As vezes é justamente para isso que o caos vem. Destruir templos e tesouros, afim de, mesmo entre escombros, nos fazer caminhar mais leves. A loucura só vai te instigar a colar vasos quebrados e a criar mausoleus.

Guerra do Nada – Primeira Parte

Inevitável. Mas a guerra eclodiu com força e intensidade muito além do imaginável.  Seguiu-se durante dias, sem trégua e sem descanso. Armas em riste diziam “não
haverá paz. Não haverá acordo”. Sem remorso. Sem pena. Sem dor. Não havia mais noite e nem dia. O sono há muito tinha se ido e não dava sinais
de retornar tão cedo. O corpo tenso e nervos a flor da pele ajudavam os olhos a permanecerem atentos a cada passo do inimigo. Não podia descuidar. Enfrentá-lo
era, claramente, uma prova de coragem e de seu valor como homem, ainda que, em muitos dias, não conseguisse se sentir assim. Há muito não conseguia sentir um
orgulho saudável de si mesmo. Agora tinha a oportunidade em suas mãos. Ainda sim, não era ingênuo. Conhecia bem o inimigo. Não seria uma guerra fácil. Aquilo era só
o começo. Aquilo era só uma demonstração do viria. O tempo deveria deixar de ser tempo, para que a angústia esvaísse.

Ferido em alguns momentos, passara horas estancando o sangue e cuidando dos machucados. Sentia o vazio e a destruição. Cheiro de escombros. Tinha medo. Principalmente, tinha dúvida. Era uma grande guerra. Mas os soldados amigos eram escassos e estavam espaçados. Ouvia tiros ao longe. E, apesar de sua própria batalha, olhava e orava pelos amigos de luta.

Na guerra, há momentos em que a esquizofrenia toma conta. É a mente e o corpo dando seu recado; algo está errado. Descuido. No meio do devaneio, uma rajada passou rente a sua cabeça e, um tiro aleatório acertara em cheio seu ombro. Sua arma foi ao chão.

O grito se fez ouvir somente na sua mente. Praguejava contra os deuses que não acreditava. A respiração alta e ofegante era o pesadelo do silêncio. Não ouvia mais tiros. Não ouvia mais passos e corridas. O que se passava do lado de fora, não sabia. E agora temia, mais do nunca. Nessas horas, como bom ser humano, pensava sobre o porque daquilo tudo. Os motivos já não eram tão aparentes assim. A motivação se esvaia com o sangue.

Era preciso estancar o sangue, o coração e a mente.

(Continua…)