Quando a tempestade que se instalara no meu interior por fim começou a se acalmar, tomou conta de mim um sentimento que desde então nunca mais me deixou: ao me virar e, lá de cima, vislumbrar o povoado, eu me dei conta, pela primeira vez, de que o mundo é um milagre que está além da nossa compreensão. “Como explicar”, eu me perguntei, “o fato de que nascemos seres humanos?” Essa indagação e esse sentimento tiveram em mim o impacto de uma descoberta totalmente nova. E, não obstante, aquilo que eu descobria estava ali, à mostra, desde os primeiros dias da minha infância. Era como se eu tivesse dormido durante toda a minha vida até aquele momento. Um sono de muitos anos. “Eu existo!”, pensei. “Sou um ser vivo!” Pela primeira vez em minha vida entendi o que é um ser humano. (…).
Sentei-me num pequeno toco de árvore e logo vi um cervo que se aproximou de onde eu estava. Não havia nada de anormal na aproximação de um animal silvestre: nas florestas ao redor de Dorf havia muitos cervos. Mas não conseguia me lembrar de já ter visto e experimentado em mim mesmo a maravilha de um ser vivo como aquele. É claro que eu já tinha visto outros cervos, quase todos os dias. Mas nunca tinha entendido como cada um deles era algo único, misterioso, muito além do que a gente pode compreender. E naquele momento entendi também por que até aquele dia tudo tinha acontecido desse jeito: eu não tinha dado tempo a mim mesmo de vivenciar a presença de um cervo, exatamente porque já tinha visto tantos.
E é assim com tudo, pensei, com todas as coisas do mundo. Enquanto somos crianças, ainda possuímos a capacidade de experimentar intensamente o mundo à nossa volta. Com o passar do tempo, porém, acabamos por nos acostumar com o mundo. Ser criança e se tornar um adulto, pensei, é como embebedar-se de sensações, de experiências sensoriais (…).
O cervo me olhou por uns dois segundos e depois saltou de volta para o meio das árvores. Por um breve instante experimentei um silêncio indescritível. Depois, um rouxinol começou a cantar. Um canto lindo, repleto de júbilo. Era impressionante ver como um corpo tão pequeno podia conter tanto som, tanto fôlego, tanta música. “Este mundo”, pensei, “é um milagre tão fantástico que, diante dele, a gente não sabe se ri ou se chora. Talvez as duas coisas ao mesmo tempo, o que não é nada fácil.”
Lembrei-me de uma camponesa que vivia lá em Dorf. Ela só tinha dezessete anos, mas naquela semana havia entrado na padaria com um bebé: uma menina de, no máximo, duas ou três semanas de vida. Nunca tinha me interessado muito por crianças de colo, mas quando olhei aquele cestinho em que estava a menina, pareceu me ver nos olhos da criança uma expressão de surpresa, de espanto sem palavras. Eu não tinha mais pensado sobre o assunto, mas sentado ali na floresta sobre o tronco de árvore e ouvindo o canto do rouxinol, enquanto um tapete de sol se estendia sobre as cumeadas do outro lado do vale, naquele momento entendi o que o bebé teria dito se pudesse falar: teria dito que aquele mundo a que ele tinha chegado era uma coisa de fato surpreendente.
Não tinha me esquecido de cumprimentar aquela jovem mãe pelo nascimento de sua filha, mas acho que no fundo devia mesmo era ter dado os parabéns à criança. Do mesmo modo como a gente deveria se debruçar sobre cada novo cidadão do mundo e dizer: “Bem vindo a este mundo, meu pequeno amigo! Você tem realmente uma sorte incrível em poder nascer e viver!”.
Súbito me senti infinitamente triste por todos nós, seres humanos, que acabamos nos acostumando com uma coisa tão incrível, tão imperscrutável como a vida.
Um belo dia acabamos achando evidente o fato de existirmos… e então… bem, só então voltamos a pensar que um dia teremos de deixar esse mundo.
_O Dia do Curinga – Jostein Gaarder