Alter Egos e Estilhaços

Aos poucos o cérebro decifrava os meus olhos.
A bomba explodiu antes do previsto. Nisso, o verdadeiro alvo permaneceu ileso. Mas crianças, mães e trabalhadores deixaram partes do corpo espalhados no chão.
O estrondo surdo no ouvido dos que estavam por perto não permitia o senso de localização.
Para onde correr? Se esconder?
Um vácuo preenchido de poeira.
Demorou mais de um minuto para o primeiro grito de socorro ser ouvido – abafado, rouco, entre o desespero e a lágrima.
Quem gritava não sabia o por quê. Não sentia dor. Somente lidava com o tremor do corpo. Adrenalina cumprindo seu papel. Mas nada entendia.
Sentiu medo ao perceber vários vultos correndo em sua direção. Palavras inauditas pareciam ser vociferadas. Se sentia culpado de ser vítima. Olhara nos olhos de Medusa e sua pele se tornara pedra. Mas por dentro tudo era terremoto.
Tentou se levantar e, na mesma hora, fora jogado de costas para o chão com violência. Ainda ouvia os berros que não compreendia. Sentia alguém violando seu corpo.
A segunda bomba explodiu e me arremessou para a realidade. Onde diabos tinha ido parar meu braço e minha perna esquerda?
Aos poucos a dor foi chegando junto dos palavrões. Vislumbrou uma mulher tentando ajudar. Parecia ser paramédica ou algo que o valha. Ela apertava abruptamente meu membro superior e inferior. Só então percebi o tanto de sangue no chão e o torniquete improvisado.
Caralho.
Desmaiou. Acordei. E não sabia precisar o tempo do apagão. Continuava entre escombros, mortos, sangue e partes do corpo que não eram seus. Meus. Não saberia dizer.
A calma só chegou em forma de morfina. Metamorfoseado dormiu o sonho dos justos.
Teria de esperar o jornal da próxima manhã para saber. Se era autor ou simples personagem.

O Paraíso Que Muitos Tentam Me Vender!

Fui andar pelo Jardim do Amor,
e o que vi não era o que eu esperava:
Vi uma capela erguida no lugar
Onde antes, no gramado, as crianças brincavam.

Seu portão fechado estava
E nele, escrito: Interditado.
Para o Jardim do Amor corri então
Onde antes tantas flores se abriam.
Mas encontrei, ao invés das flores, sepulturas,

E lápides frias e espalhadas.
Sacerdotes em vestes negras vigiavam
E com espinhos os risos e alegrias proibiam.
(1)

“O Paraíso continua a existir como esperança, nas palavras dos poetas. O corpo come pão para poder andar. Mas, para poder voar, é preciso ter asas… A poesia são as asas da alma. ‘A poesia, a mais humilde, é serva da esperança…’ (Adélia Prado)”

Vagarosamente, todos saíram da tenda repetindo as palavras e esforçando-se por não esquecer: “A poesia é serva da esperança, a poesia é serva da esperança, a poesia é serva da esperança”. E foi repetindo esse mantra que adormeceram sonhando com o futuro.

(1) Poema de William Blake

Retirado de PERGUNTARAM-ME SE ACREDITO EM DEUS de RUBEM ALVES.