Para Foucault – analisando os séculos 17 e 18 – “o suplício [penas judiciais torturantes] não restabelecia a justiça” mas “reativava o poder” do soberano. Mesmo que uma infração cometida não lesasse ninguém, a pena tendia a ser severa por ser uma afronta direta ao rei.
“Vemos pela própria definição da lei que ela tende não só a defender, mas também a vingar o desprezo de sua autoridade com a punição daqueles que vierem a violar suas defesas” escreveu Muyart de Vouglans em 1780.
Num olhar generalista, apesar das reformas jurídicas ao longo dos anos, me parece que essa premissa foi amplificada. Se antes a afronta era diretamente ao rei ou o clero, hoje ela é intrínseca a sociedade de consumo. Por isso da validação dos linchamentos públicos baseados apenas na desconfiança e aparência, do aplauso em questões obscuras como o garoto de 10 anos assassinado pela PM, a crítica de muitos em relação ao, por exemplo, movimento secundarista em efervescência no Brasil, de nossa política que tem o falso moralismo como base de governo, culminando em aberrações como “dia de combate a cristofobia” e, em especial pelo calor do debate, a questão do estupro que culpabiliza a vítima.
Em resumo, a justiça, em todos os âmbitos, não tem servido a verdade, nem defendido o indefeso e, menos ainda, protegido o desvalido. Ela é serva plena do poder. Seja de um governo corrupto ou até do ‘cidadão de bem’ que se apossa do direito de matar física ou psicologicamente para, quem sabe um dia, refletir e julgar a veracidade e a justeza da questão.
Por isso, me parece mais próximo da justiça e da verdade, a desobediência. Seja ela civil, religiosa, familiar e/ou de qualquer outro núcleo.
Inclusive, me admira muitos projetarem essa lógica de (in)justiça e (usurpação de) poder no Deus cristão. Pensando que Jesus, sendo Deus, “esvaziou-se a si mesmo, tomando a forma de servo, fazendo-se semelhante aos homens; E, achado na forma de homem, humilhou-se a si mesmo, sendo obediente (ao chamado em Mateus 11:5 – e desobediente aos sistemas desse mundo) até à morte, e morte de cruz”.
Talvez alguns queimem nessa fogueira, outros sejam supliciados e crucificados, mas a história há de reverberar a paz e absolve-los. Mais do que isso, libertar outros.